terça-feira, junho 01, 2004

Hipocrisia e memória

1.º Um dos temas mais recorrentes da Política é o da verdade, o que se atesta bem em dois principais níveis:

- a verdade na divulgação dos dados de que se dispõe, não os manipulando ao sabor de estratégias eleitoralistas;

- a verdade das intenções e dos projectos de governação, não os escamoteando, em função dos popularismos do momento.

Mas dimensão não menos relevante é a da verdade das emoções e dos sentimentos que os políticos sentem uns pelos outros, reconhecendo-se que há um patamar que não é possível ultrapassar, sob pena de tudo valer para um objectivo maior, que é conquistar ou manter o poder.

2.º Daí que a verdade na política esteja intimamente associada à memória, sobre aquilo que já aconteceu e sobre aquilo que outros tentaram ou fizeram para que acontecesse.

Naturalmente que importa enquadrar a relevância da memória e destrinçar entre o que é pessoal - que possivelmente tenha ferido a honra - e aquilo que é político - no sentido de ligado à governação.

Assim como é do mesmo modo forçoso ser tolerante em relação ao passado e aceitar que os erros possam ter sido cometidos e que, como tal, podem ser esquecidos e perdoados. A virtude cristã da caridade desempenhará neste contexto um papel fundamental.

3.º Mas há limites que a actividade política não pode obliterar, sob pena da instauração da República da Hipocrisia e do «vale tudo». É verdade que o espaço da Política não é um convento de virtudes. Mas também não é menos certo que a Política não pode aceitar tudo, em que é premiado o fautor de todas as traições e de todos os calculismos.

É aqui que a memória ocupa um lugar essencial: não pode haver Política sã sem Memória, no sentido de que o presente pressupõe um passado, ao mesmo tempo um certificado de garantia e um augúrio do que sucederá no futuro.

4.º Vem tudo isto a propósito do recente encontro entre Xanana Gusmão e o General Wiranto, este candidato presidencial na Indonésia, encontro que tem sido - e bem - muito criticado. Os Portugueses não podem esquecer os massacres ocorridos em Timor-Leste, tal como não podem esquecer a participação que aquele general teve nesses mesmos crimes.

Como é possível encarar sem arrepios os abraços efusivos, as mãos por cima dos ombros e os muitos sorrisos trocados entre aquelas duas personagens lembrando esses factos?

Como é possível observar Xanana Gusmão - que interpretou a causa de um povo que foi massacrado em milhares de mortos, com o seu jovem país praticamente destruído na totalidade das suas infra-estruturas - de mão dada com um dos principais cérebros de anos a fio de prepotência e de arbitrariedade?

Como é possível conceber a disponibilidade de Xanana Gusmão para publicamente se encontrar com alguém que representou o maior pesadelo da história do povo que quis defender e de que é Presidente? Não é possível. A política sem Memória - ou, pior, com a mais profunda das hipocrisias - é um imenso lodaçal, do qual quem entra nunca mais conseguirá sair. É pena.

Jorge Bacelar Gouveia

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