terça-feira, abril 27, 2004

O meu Livro de Memórias

O meu Livro de Memórias é uma relíquia. O meu querubim. É o espaço onde eu posso brincar com as palavras e escrever para mim mesmo, sem regras, sem propósitos definidos e sem o intuito de transformar o meu livro em alguma obra-prima. É simplesmente um amigo que tenho, e tem a particularidade de ser escrito com o meu próprio punho. Já basta servir-me de um teclado para escrever as minhas mais pessoais palavras, honrando-as desta maneira e enaltecendo-as com a minha própria caligrafia, tornando-se assim mais único.
Cada vez que o folheio ou imprimo todos os meus pensamentos instantâneos, há sempre um pensamento que assalta a minha mente que é “em que mãos ficará este livro depois de eu deixar de existir?”
Que mistério tão contemplativo!
Reconheço que é um pouco lúgubre e contradiz um pouco com a cor que imputo neste livro, mas é este e muitos mais pensamentos que detenho em relação ao meu livro. É como se fosse a um museu e estar a observar um pertence de algum nobre rei que viveu há muitos anos atrás, e que ele próprio teve no seu tempo este tipo de pensamentos. Os antigos pertences são misteriosos no sentido de serem também eles contemplados. Quem é que nunca pegou em fotografias a preto e branco e não se pôs a contemplá-las como o fazemos quando olhamos para o azul celeste que tanto me intriga na sua maior existência? Quem é que nunca pegou num pertence de um nosso antepassado familiar e disse “Isto pertencia ao meu tetra avô.” Nada se diz depois destas palavras serem proferidos a não ser uma exclamação que revela o espanto. Imaginem qual será a sensação que, daqui a muitos anos – assim eu espero - a pessoa que será dona deste pequeno Livro de Memórias sentirá quando o folhear. Se espíritos existirem, quererei estar presente neste momento para poder sorrir e verter lágrimas de uma saudade calorosa de sentir vivo. E espero sentir o perfume dos livros com as suas folhas amareladas e acidentadas com a erosão do impiedoso tempo. Afinal ‘eu’ estou naquele livro. É nele que me revelo no meu estado mais puro, pois até a própria caligrafia revela-nos sempre mais uma pequena característica de nós próprios. Talvez por isso eu sinta que este pequeno fugitivo, pois já aconteceu ter andado desenfreadamente à sua procura, é a minha obra-prima mais intima. Defendo a ideia de que tudo aquilo que fazemos enquanto vivos, contribui para a obra que deixamos nesta estranha vida. Virão os tempos que falarão daqueles que hoje fazem e amanhã serão, ou não, recordados para toda a eternidade. Talvez por isso seja um eterno apaixonado da História.
Por que será que tememos tanto a Morte e temos medo de viver? É que só se vive mesmo uma única vez, e carpe diem quero eu que seja um dos meus principais lemas, assim como aqueles que têm como divisa “Querer é Poder”, que é tão imponente quanto o sentimos realmente. Acredito que até esta que ceifa tantas almas num curto espaço de tempo, possa até vir a ser...boa... ninguém sabe e recuso-me indelicadamente de ouvir descrições patéticas daqueles que dizem que estiveram já na ‘outra vida’, mas que milagrosamente voltaram. Sou bastante céptico dessas descrições fraudulentas. Só poderei concordar com elas quando deixar eu próprio de respirar.
O encanto deste Livro de Memórias, é a sensação que nos provoca como se de um perfume se tratasse. Acontece-me por muitas vezes retroceder no tempo quando passo por alturas do ano nas suas definidas Quatro Estações. Se é Primavera sinto outra vez as mesmas sensações que guardei para sempre, quando pequeno eu era, e que vi os primeiros rebentos primaveris, depois de me sentir doente ainda na estação invernal. Nunca, mas nunca mais irei esquecer-me da sensação que nos faz transbordar de um prazer único, de ter visto nas frondosas que se tornaram aquelas árvores no jardim onde foi palco a minha infância; aquele azul vivo e etéreo do qual o céu se vestia com a generosidade do Sol. Nem uma nuvem manchava o seu traje. Esses perfumes podem ser tão facilmente guardados na nossa própria memória ou em palavras. São formas diversas que estão ao nosso alcance mas que por vezes, pelo aperto funesto da preguiça, justificamos aquilo que não fazemos mas que gostávamos muito de fazer se houvesse tempo.
São com este tipo de ‘brinquedos’ e pertences que tento colorir os meus dias, que tento não ficarem iguais ao ponto de serem facilmente confundidos. É sintoma da nossa monotonia, da qual me fez sentir noutros tempos uma consumidora exaustão, que me fez viver de maneira a que me arrastasse e perdesse a vontade de me levantar, pois a razão de o fazer estava tão ocultado de mim, que quase me resignei a ser assim para todo o sempre. Assim não me arrasto. Assim me vou divertindo, brincando e colorindo um mundo que praticamente exige que nós sejamos exactamente o contrário da cor, que guilhotinam-nos todos os desejos de sorrir livremente nos infindáveis e diversificados locais de labor. Sofro com isso mas divirto-me ao mesmo tempo, porque todo este colorido é colocado sempre às escondidas desses olhos que repreendem e que nos tentam descolorar o mais que podem. Corro o risco de caminhar para a guilhotina, de ser apanhado e chicoteado psicologicamente pelos...incolores, esses que de vez em quando precisam de serem inundados com uma colorida enxurrada, que precisam de luz, de serem iluminados e ofuscados com a luz das pessoas que a detêm e delas emanam de forma abençoada.
Enfim...são este tipo de devaneios que se podem ler no meu Livro de Memórias...

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