quinta-feira, abril 29, 2004

Não sei viver de outra maneira

Não sei mesmo viver de outra maneira.
Que querem que eu faça? Digam-me e eu até poderei seguir conselhos que sejam coerentes e susceptíveis de mudar em mim, qualquer característica que eu sinta prejudicar-me de qualquer maneira. Se sou assim, é porque sou. Se não sou, é porque não sou. Decidam-se.
Ou melhor: eu decido. Posso ser?
Que triste é e pedregoso o caminho de quem muda em função do mundo. De quem quer ser um igual porque medo tem em ser ele próprio. Que tortura era se me transformasse noutro que não fosse eu mesmo. Que querem? Sou assim. E acreditem que me custa viver a subir e descer montes, fatigado de caminhar, de tropeçar e levantar-me por mais que me custe, viver como o caminho de uma cordilheira que é árduo o caminho, alto o pico e doloroso o trambolhão quando se escorrega e vem por aí abaixo, como uma avalanche. Mas a vida não é feita de altos e baixos, em tudo o que possamos considerar viver? O que é viver? Quem és tu? Como queres viver o teu curto espaço de tempo valioso? A esbanjá-lo em cafés barulhentos perfumados de fumo, repletos de gente que fala alto e bom som, em que para expor uma ideia quase temos um enfarte do esforço que se faz para ser ouvido, em que os companheiros do lado derramam sobre ti a cerveja que bebiam em copos de plástico? Copos de plástico? Não! Recuso-me a beber uma cerveja que já de si é cara, e recuso-me a esbanjar constantemente o meu tempo assim. Que querem que eu faça? «Anda lá beber uns copos. Vais ficar mais animado.» O quê, mais animado? Essa é boa. Mais animado por vaguear em ruas recheadas de bares e discotecas, e discotecas e bares, em que as musicas que destes sítios gritam estridentes, embrenhando-se uns com os outros, provocando uma ruidosa e profunda dissonância, tornado-me surda a minha lucidez? Ver gente completamente embriagada, rindo-se em perfeita condescendência com as piadas idiotas de um bêbado, vomitando para cima das moças que vestiram aquilo que compraram durante a semana nas lojas caras, exibido os seus torneados contornos e tentadores com curtos trapos de tecidos que ofuscam-me os olhos quando passam por mim, e fazem comentários desprovidos de alguma graça quando vão a passar à frente de um bando de rapazes que agarram a sua bebida preferida numa mão, e escarram para o chão, urinam nos cantos, gritam proferindo impropérios mesmo nas barbas de pais transeuntes com os seus filhos que fogem constantemente deles porque querem correr e brincar, fartos da secante confraternização que foi o jantar com os primos que desconhecem e que nunca os viram na vida, que vieram do Minho de comboio, e que, não tendo sítio para ficar, fingiram vir visitar os pais que há mais de dez anos vivem mergulhados na mais profunda miséria e que só queriam ver o Estádio da Luz, que por acaso até foi construído com o dinheiro dos pobres contribuintes que se levantam quando o galo ainda não cantou aquela sua horrorosa melodia que acorda o mundo em sobressalto, para ir trabucar e aturar as ordens draconianas, originadas pelas suas frustrações concebidas por casamentos feitos coercivamente pelos pais que vieram do Minho de comboio com os seus filhos que fogem constantemente deles porque querem correr e brincar, fartos da secante confraternização que foi o jantar com os primos que desconhecem e que nunca os viram na vida, ouvindo os impropérios, de rapazes que agarram a sua bebida preferida numa mão, e escarram para o chão, urinam nos cantos, que vomitam para cima das moças que vestiram aquilo que compraram durante a semana nas lojas caras, exibido os seus torneados contornos e tentadores com curtos trapos de tecidos que ofuscam-me os olhos quando passam por mim, e fazem comentários desprovidos de alguma graça, e ? Ver gente completamente embriagada, rindo-se em perfeita condescendência com as piadas idiotas de um bêbado? Não! Recuso-me solenemente de viver assim.
Não condenando este ciclo louco e vicioso, porque sou completamente a favor que as pessoas são livres de criar e defender a sua filosofia de vida, até porque também eu já fui apanhado neste tornado, que arrasta furiosamente multidões para o seu berço, aprisionando-nos e consumindo a esperança lentamente que algum dia a vida mude.
Caros amigos. Somos livres, de alguma forma, de fazermos as nossas opções, por mais escassas que podem parecer, mas como é virtude daqueles que desconfiam sempre dos seus desejos interiores, o “querer” é forte e imponente, e dá-nos a força necessária para sair desses ciclos que nos esvaziam as almas, e que desarmam daqueles que nos querem prender nesse circo (e ciclo) vicioso dos que desperdiçam o tempo persistentemente nos balcões pedindo bebidas alcoólicas, enriquecendo os donos e empobrecendo a sua beleza interior, que, para mim e para mais alguém em especial vem da sua abençoada “leveza do ser”. Eu é que já dormi em cima desses balcões demasiado tempo, e tenho pena não ter acordado mais cedo.
Não sei mesmo viver desta maneira, e agora... agora não sei mesmo viver sem ser à minha maneira.
Arrivederci!

29/04/04


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