Fiquei sem carro, por um dia apenas.
Por um dia apenas voltei a utilizar os transportes públicos, um circuito que conheci de perto durante quase toda a minha vida, todos os dias... autocarro, metro, barco... no despertar da manhã, ao final do dia... 1h30 em cada jornada.
Nunca gostei deste ritual admito, posso até dizer que abomino os transportes públicos, em hora de ponta particularmente. Mas é uma boa altura para ler aquele livro, o jornal, para conversar com os amigos. Muitas boas horas passei com quem gosto de partilhar e admiro, a conversar, de tudo... desde o frango do Moreira até ao despedaçar de sonhos e projectos de vida e ao despontar de novos. Abomino os transportes públicos, mas nunca as conversas do barco (uma versão margem sul das conversas de café).
Ontem, subitamente, fiquei privado das minhas pernas sobre rodas. Sem livro, sem jornal, sem música, sem aquela companhia que tanto aprecio, no entanto estava num momento high. Nestas alturas, por vezes, dá-me para observar, olhar o que me rodeia, as pessoas nos seus mundos paralelos (tal como eu), sem ser intrusivo.
São 19h30 e embrenho-me no circuito, rumo ao conforto.
Vejo o tipo de fato com ar abatido e cansado, um outro a olhar pela janela para todo aquele nada escuro lá fora, casais a namorar ou a discutir, mas ambos refundidos, ou mesmo indiferentes, uma outra pessoa, muito parecida comigo, mas “à civil”(ai o fato, o fato!!!) com phones nos ouvidos – que saudades tive naquele momento desse meu pequeno grande companheiro de viagens, o mini-disk... 340 minutos de música sem paragens – vejo tudo isso, mas no fundo não vejo nada, nada me toca, não existem caras. Vejo tanto como quem olha pela janela do metro. Estou ali, invísivel a olhar para outros tantos invisíveis.
Nada me toca, nada me tocou... pelo menos até aquele semáforo. Ao verde avanço, atravesso a estrada, e faço a curva, à minha frente um entulho de cartão... uma casa! Com uma PESSOA! Deixei de observar, olhar, passei a ver... as pessoas passavam ao lado como se nada existisse, pisavam os cartões a roupa, ali a um canto na lama.
Estava de frente com a miséria humana e a pensar “não é possível que não se possa fazer nada” Como é possível chegar-se a este ponto de degradação da condição humana e como é possível semos tão indiferentes.
Vi algo que tinha visto durante anos, mas ao qual me tornei indiferente, insensível, imune.
Por momentos aquela imagem tocou-me... deixou de ser invisível. Foi a falta de treino do circuito diário que me deixou assim. Por momentos, breves instantes, um lapso de tempo, mas apenas isso. Numa passada foi-se, voltou a ser invisível, a rotina de muitos anos ressurgiu, reaprendi a ignorar (se alguma deixei de o fazer...).
Segui indiferente ao que me é invisível, mas mais ainda incompreensível...
Sentei-me, 30 minutos de barco. Mais 30 minutos de invisibilidade com tantos outros corpos, suspensos em si mesmos. Nada de novo, uma rotina tão conhecida, apenas abalada por um fugaz cruzar de olhos, uma fugaz troca de olhares, uma carinha laroca, um sorriso comprometido. Uma subita e momentânea perda de invisibilidade.
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