Dias de tempestade
Com o cântico alegre dos passos silvando ainda nos ouvidos da minha memória, andava eu desprendido. Conjugava quase todos os verbos que nos fazem sentir vivos, modificando as janelas das nossas almas, os olhos.
De súbito, o cântico cessou.
É de suspeitar logo quando os cânticos e rugidos da fauna cessam de um momento para outro. O seu silêncio pressagia sempre uma tempestade, seja ela de que maneira for.
Tento olhar bem para lá do horizonte, tentando descortinar os ramos da minha frente para alargar a minha visão periférica, e saber porque os animais se calaram gradualmente. Todos se recolheram às suas tocas e esconderijos, correndo desalmadamente e desinteressados da busca dos seus alimentos, onde as aves à necessidade de encontrarem um seguro abrigo, cancelam os voos que tinham programado durante o dia. Todos se alarmavam da tempestade que se avizinhava, e era anunciada pelo primeiro ribombar do trovão, onde o céu andrajosamente vestido com cores enegrecidas pelo cinzento carregado, estava pronto para descarregar sobre a Terra a sua ira.
O primeiro gotejar sente-se na pele e pelo roçar das pesadas gotas na copa das árvores caindo primeiro uma, e depois outra e outras seguindo-se.
Despreocupados com os primeiros silvos dos ventos irados e habituados a dias de sol e generoso céu azul, nem me apercebi do vendaval. Deixei-me ficar absorto nas minhas cogitações, em que tentamos arquitectar os nossos pensamentos e ordená-los prioritariamente, completamente abstraídos do mundo que nos rodeia. Tinha perdido o meu sentido vigilante e quando acordei do meu sono desperto, já era tarde demais para me abrigar da primeira investida do temporal.
Quando se desaba sobre nós uma tempestade de ventos irados, nuvens enegrecidas, com o complemento da copiosa chuva, o primeiro instinto que se tem é procurar um abrigo capaz de resistir a esta força natural; a esta descarga de várias energias que nos fazem curvar perante a sua força e indignação, e nesse precioso abrigo, fazer o que nos dias de hoje é tão difícil para qualquer comum mortal e que considero que seja das mais ricas virtudes que um ser humano pode ter e usar para seu próprio benefício: esperar. Pura e simplesmente esperar que a tempestade que, sendo mais forte que nós, somos átomos vulneráveis comparados com a sua descomunal força, e seríamos levados no seu embalo, se de tal precioso abrigo não procurássemos, e não tivéssemos a sabedoria suficiente que, a única coisa a fazer é esperar que a tempestade passe, e ter esperança que ela não nos faça derrubar o nosso abrigo, que por mais que seja resistente, é vulnerável para as mãos titânicas de uma força capaz de derrubar que à sua frente se colocar. Idiota é aquele que acha que consegue manipular a natureza para seu benefício. Usufruir dela, sim. Manipula-la, nunca. É negligente pensarmos que somos capazes de enfrentar sozinhos, sem recursos para o fazer, os dias tempestivos sem nos abrigarmos do seu fustigo e indignação. É impensável.
Metaforicamente falando, tudo isto não foge muito à realidade das nossas vidas. Com a alma enegrecida pelas nuvens que carregam todas as nossas preocupações, que fazem branquear a nossa juba, pois pensamos às vezes que somos os reis da selva, com o silvar dos ventos, das quais se ouvem palavras caluniosas sobre a nossa pessoa, manchando os nossos nomes, em que ouvimos constantemente as injúrias, julgamentos, difamações e outros ventos que semeiam dias mais tempestuosos, é mister dizer que, quem se abriga no seu refúgio, sabe esperar que o temporal passe, tendo a esperança como principal companheira e fiel ao nosso querer, tem mais possibilidades de sobreviver a este tumulto do que aqueles que, heroicamente, mas ao mesmo tempo estupidos e preguiçosos ao uso de seus intelectos, tentam caminhar contra a força da ventania, guerreando com os ventos, a chuva, as enxurradas, as ruas alagadas que desfilam em rios e riachos pelo solo enlameado. É como socar o ar que respiramos. É inútil debatermo-nos.
É claro que enquanto esperamos que o temporal passe, pois cada vez mais nos agarramos à ideia que o mundo conspira contra nós, reflectimos mais calmamente sobre tudo o que se passou, e se formos humildes, concluímos que tinha sido uma idiotice sair desse precioso abrigo para chegar mais depressa aos destinos de cada um de nós. Por vezes aquele que espera, chega mais depressa ao seu destino do que o mais apressado. E depois do temporal, saímos e avaliamos os estragos causados pela ira sobre humana, que é indubitavelmente falando, impossível de ser travada.
Estes dias de tempestade que se desabaram sobre mim, e que, não conseguindo conter a minha vontade de continuar o meu caminho porque o fardo era pesado e impacientava todos os meus sentidos, e não tendo sido sábio e inteligente o suficiente para esperar que tudo passasse, pensando que não pode chover sempre, foi o suficiente para ficar atordoado e estremecido como uma lebre que foge do seu predador. Sentia-me arrogante e destemido, não temendo nada nem ninguém, e essa arrogância e falta de humildade levou com que fosse derrubado por todos os recursos de dias mais agrestes e cinzentos, não tendo a capacidade de ampará-los e aguardar no tal precioso abrigo.
Reflectindo no sucedido passado, pois já consigo descortinar os primeiros raios do sol sentindo a alma a tiritar, concluo que sábio é aquele que sabe esperar e tem esperança que dias de sol cheguem para irradiar mais os seus ...e tudo isto é um ciclo que gira sobre nós...........................
EFB – 22/04/04
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