segunda-feira, abril 12, 2004

Meu querido papel branco...

Há acontecimentos e aborrecimentos nas nossas vidas que, às vezes, nem com aqueles que me são mais queridos eu os procuro para desabafar. Isto porque neste preciso momento de conter toda a minha ira, tenho preferência de esbofetear o vazio, ou seja, em ti, meu querido papel branco.
Tais como aqueles que pintam, tocam e escrevem num furioso desmedido, assim também o farei agora. Não magoa ninguém, apenas te furto a tua candura, em que a tinta te castiga e grava em ti todo o meu tropel de pensamentos.
Não me alongando mais na minha humilde introdução, devo desabafar a ti, ó papel branco, tudo aquilo que me aconteceu. E vou tentar ser imparcial até para mim mesmo, e não tentando com isto teres pena de mim, tentarei ser o mais literalmente possível nestas palavras que em ti cravo.

Na quinta-feira passada adoeci contra a minha vontade. Isto parece ridículo dizer contra a minha vontade mas, pela poeira levantada no deserto em que me encontro, em que as pessoas munidas de uma língua áspera e bífida prontas para o maldizer de terceiros, obriga-me a rotular a minha vontade sobre o meu estado de convalescência. É que já não se pode adoecer assim sem mais nem menos, e aproveitando estes tempos de modificações e renovações das leis laborais, é legítimo dizer que se o governo ouvisse estas línguas bífidas a murmurarem no escuro e nos mais recônditos sítios, isto porque têm medo de se mostrarem e serem inundados com a luz solar, vivendo assim como os roedores citadinos (mais conhecidos por ratos), inventavam uma nova lei que os trabalhadores para ficarem doentes e em convalescência nos seus lares, só lhes era permitido ao domingo, isto porque Sábado é - dizem eles - descanso complementar. Aos dias da semana é que já é um pouco mais difícil, isto porque quem ficar doente, correrá o forte risco de ser alvo de conversas no escuro e de libertar de sim mesmo uma falsa imagem quanto à sua atitude profissional.

Para ti, papelinho em branco , preciso descrever-te e pintar-te com pouca cor esses espécimes que têm por alimento o maldizer dos outros. Normalmente não se alimentam de qualquer ração. Não, não, não! A ração preferida destas criaturinhas roedoras e mimosas, para olhares ingénuos e inocentes, é a vida dos outros. E isto, na minha magríssima opinião, pois ultimamente não tenho comido muita bolacha Oreo, sentem a pura necessidade de saber de vida alheia por serem carentes e desconhecerem desta mesma palavra que tanto mistério nos revela sobre o seu sentido divino: vida! Talvez me esteja a enganar porque toda a gente tem a sua vida, mas nem todos vivem a sua vida e preferem viver a dos outros. São complexos em todo o sentido da palavra da complexidade. Melhor: até a conseguem superar, porque o trabalho de tentar compreender a mente de um roedor é bastante árduo para aquele que se dedica ao seu estudo. Esboçam um sorriso demasiado perfeito. Pergunto-te a ti, papelinho branco: isto não é de desconfiar logo à partida? Mostram-se muito carinhosas, afectuosas, mimosas, virtuosas e tudo que acabe em ‘osas’ mesmo antes de nos conhecerem e sem saberem à partida as nossas vidas. Ah, ah mas vão querer saber. E não é alguma coisa. São uns ‘filos’ , não só da ‘sofia’, mas também de toda a sua vida pessoal. Pobre coitada da sofia que não sabe que o que lhe espera, é a sua reputação tingida pela tinta expelida por essas líguas, esses falsos, esses escravos de maus vícios, sendo um deles esse maldizer que tanto arruinam e mancham a dignidade e postura daquelas pessoas que apenas querem trabalhar porque precisam, nada mais.

Que triste alimento. Sinceramente.
É porque, provavelmente, ainda não descobriram que o arroz de marisco, por exemplo, é melhor alimento do que as conversas no escuro e que pode sair muito mais barato.

Relendo as minhas palavras que deram origem à história que tenho para te contar, papelinho branco, já podes contemplar melhor a tela que acabei de pintar, se bem que não acabei por dar os meus últimos retoques, visto não haver tempo para o fazer, e estar num sítio impróprio para pintores como é o meu local de trabalho. Se me vissem o que eu estou a fazer neste preciso momento, servia de mais ração para eles. Mas mesmo assim arrisco um pouco de andar na corda bamba.

Como eu tinha contado anteriormente, adoeci na passada quinta-feira que me forçou a permanecer em casa, sentindo-me enfraquecido pela febre e pelos vários sintomas que anunciam sobre o nosso corpo uma tempestade da qual é preciso abrigarmo-nos dela. Logicamente teria que avisar as entidades que me são superiores hierarquicamente do sucedido, telefonando de pronto alertando-os que seria necessário permanecer em minha casa porque sentia-me incapaz de bulir em tal estado. Como tal, do outro lado do telefone ouvia-se uma voz de ganso que se afoga aflitivamente que o facto de eu estar doente, não era suficiente para eu permanecer em casa, e afirmando também ele que estava doente mas que estava a trabalhar. Depois de uma afirmação destas, apeteceu-me dizer: “ora abóbora”, como se dizia no antigamente, mas que hoje na língua portuguesa esta expressão foi substituída por um valente: “FODA-SE!”... interior, claro. Fiquei estupefacto com o que tinha ouvido do outro lado, e assaltou-me uma antítese curiosa que não deixa de ter alguma lógica: se eu recebesse uma chamada do ganso em que ele tivesse em casa, em convalescência ou não, a informar-me da sua falta no escritório, eu poderia ir para casa também porque o ganso afogado queria que eu fizesse o mesmo que ele, segundo conversa da minha chamada telefónica. Espero sinceramente que não conte para a minha avaliação de desempenho profissional, a minha recusa a um hipotético pedido desse ganso agoniado de me lançar da ponte 25 de Abril sem pára-quedas.

Como se isto não bastasse, o ganso agoniado, sua gansa e seus gansinhos, lançaram um bocadinho, por aqui e por além, o facto de estar doente era falso, ao qual uma gansinha desproporcional aos bancos do autocarro por necessitar de dois para se sentar (ou três, não sei bem) rematou que a principal razão era porque era o fecho do ano e que eu não estava para isso. Tristes vozes esganiçadas, meu querido amigo papel. Talvez um dia a vida me conceda uma única oportunidade dessas áspides engolirem o próprio veneno. Coragem tenho e vontade não me falta. Não tenho é oportunidade para me limpar dessas injúrias que proferiram sobre mim. Por agora ignoro-as, não me adiantando de nada converter o meu ódio contido em quezílias desagradáveis para ambas as partes. Seria uma falta de sentido de oportunidade estar a germinar dentro do seio do meio onde trabuco, guerrilhas pequenas que condenam a uma continuidade desnecessária. Como o meu paizinho que andou nisto há muitos anos diria “tens que engolir sapos”. Contrariando a filosofia do meu pai diria talvez: “Pai: Sapos engulo por mais que me custe. Agora gansos e gansas, nem pensar. É que não quero mesmo engolir um ganso e sufocar com as suas penas. Tenho muita pena mas os sapos não as têm...”

Que vergonha teria eu de mim próprio se fosse assim...

Para concluir, gostava de te dizer umas últimas palavrinhas, meu papelinho branco, visto teres sido generoso em gravar em ti o reflexo do meu desabafo que, não importando ser importante para o mundo, é precioso para mim, este espaço em branco que te furto, servindo para descarregar não naqueles que eu amo, toda a minha indignação sobre a gente que eu só posso considerar pequena. É como se socasse no vento e descarregasse sobre ele, aquilo em que sou peremptório recusar-me a guardar dentro de mim. É essa a causa da ausência de cor. Como é que eu posso colorir o mundo e o “meu mundo” se consigo absorver apenas a cor cinzenta, desprovida de luminosidade que me entristece e aborrece, e que me atira para o abismo. Nesta pequena história enalteço a mesquinhez no seu formato mais pequeno, mais minúsculo mas que considero um vírus que infecta qualquer um que não se sinta iluminado, e que se propaga como uma praga. O meu antídoto para este vírus é esperar pacientemente que a maré me traga utensílios que me sirvam para construir uma defesa inexpugnável. E sabes o que é mais curioso, meu querido papel branco? É que hoje nem sequer me olhavam nos olhos. Mas eu consegui...sem saber bem porquê.

Adieu, mon papier blanc

By Edmond

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