sexta-feira, outubro 08, 2004

Solidão por um curto instante

Estou só, sentado na secretária habitual,
Rodeado de papéis sem pitada de romantismo.
Afundo-me num mar sem cor,
Sem o brilhante e constante piscar das águas,
Um cardume de raios do grandioso sol,
Que me envolvem de puro prazer.

Foram-se todos embora, e fiquei por aqui só,
E quando regressarem, com o sibilante vento outonal,
Sentir-me-ei só na mesma, mesmo rodeado de gente,
Que se agarra afincadamente aos malditos papéis,
E eu cá me arrasto novamente,
Tentando rumar pelo quadrante que me orientei,
Qual astrolábio, qual utensílio,
Que me revele o Norte ou Estrela Polar.

Aquela persistente dor envolve-me outra vez a mente,
Mas minha cabeça, que lateja de tanto filosófico pensamento.
Cultiva meu intelecto sem cultivar o corpo,
Esculpido pelo cinzel de uma vida atarefada de formiga,
Que não pode parar por qualquer motivo,
Pois não quero estagnar em tão decisiva altura.
Apenas na vida, quero a delicada candura.

Alva cor azul no céu, só não chega,
E eu que ando de feição com o vento ou aragem,
Sinto no rosto a brisa matinal refrescando o raciocínio,
Mas começa o tal declínio,
Quando sou autómato de maquinaria estranha,
Que aprisiona seres pensantes,
Representando um perigo eminente ao reino mundano,
Movido por alguém sem identidade.

É este o sentido da vida?
É este o caminho escolhido por mim,
Sublinhado por arcaicas filosofias e aforismos,
Que aguçam mais minha existência no mundo?
Se for rejeito, pois quanto menos tiver em posse melhor,
Desocupo-me de responsabilidades fúteis que me empobrecem,
Que me esvaziam como um saco que colhe apenas vento,
Apenas vento, nada mais.

Onde estão os fervorosos amigos que tenho,
Abençoados fortemente por um sorridente passado,
Em que felizes andámos só com diálogos nas algibeiras,
Porque outros pertences não havia, felizmente.
Elevo a veemência quando digo que tenho muito porque nada tenho,
Que me ocupe o tempo escasso com perfeitas ninharias,
E quem deseja assim viver, dormindo a fazer contas,
Façam-nos vós e deixai-me a sós na loja dos meus brinquedos.

O que escolho para mim será só esta súbita solidão,
Que tempera o insípido espírito, furtando nossa alegria,
Porque se forma um caracter para sobreviver na selva,
Fazendo autómatos sincronizados na perfeição?
Qual o horizonte que vislumbro através do óculo,
Lente do desejo e do coração que nos diz para onde ir,
Que embaraça o que me embaraça,
E que de preconceitos fazem os pudicos despirem-se?

Categoricamente, rotulam-me com tal leveza,
Que no meu íntimo solto sonoras gargalhadas,
Pois julgam que já sofreram o bastante,
E detentores de uma moral que só no mundo deles existe.
Inquisidores, castradores do pensamento livre e próprio,
Anuncio-vos meu mundo livre e que livre deixa ser,
Não a insolente liberdade que causa burburinhos pelas ruas,
Pois a multidão não pensa por ser apenas manipulada.

O que quero não revelo por ser precioso em demasia,
Há quem inveje livres pensares ou livres seres.
Nos presentes dias sinto que me furtaram,
Um pouco da selvajaria que me guia pela floresta.
Tenho loucos pensamentos e continuo a ser um louco,
Pois vou depositar ao covil dos lobos a revelação,
Do que me move, amo ou penso,
Do que desejo e me alimento que me torna assim único.

Todos sentem a fadiga morder-lhes os braços,
Atordoando-os com palavras de comum universo,
E por outra via, vem cansar quem não se cansa,
Ou se cansa não demonstra seu cansaço.
Dizer-se cansado só serve de subterfúgio,
Quando nos envolve um negrume, não desejando,
Que o negro encobrimento seja contagioso,
Para os que se mais ama, estima, entes queridos.

Doce solidão só por um curto instante,
Servindo de viagem, embarcando na caravela,
Içando as velas com ventos de feição,
No mar mental da fantasia. Maravilhoso!
Mesmo quieto, fechado em quatro paredes,
Não quero estagnar só com o seu branco,
Prendam-me os membros e coloquem-me mordaça,
Pois a mente viaja sempre. Estar preso não me embaraça.

EFB – 08/10/04 (14:14)

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